Havia alguns meses que nós nos
conhecíamos e jamais o tempo passou rápido para mim.ela era ajudante de costureira
no ateliê modestíssimo de Madame Graça, velha amiga de minha mãe. Meu irmão
Alfredo, que morreu aos vinte anos, estupidamente, duma pneumonia dupla, era um
rapazinho importante: não gostava de fazer
recados, de carregar embrulhos, de comprar coisas para casa na cidade.
Mamãe respeitava-lhe a vaidade. E eu fui buscar um vestido que ela
mandara reformar – a seda estava perfeita, valia a pena. Quem me atendeu foi Stela. Madame Graça havia saído e ela não
sabia do vestido. Madame Graça não lhe prevenira nada. Mas não poderia
esperar?- perguntou. Madame fora ali pertinho, não demoraria. Eu disse que
esperaria. Ela me ofereceu uma cadeira, voltou para o seu trabalho e pusemo-nos
a conversar.
Stela era espigada, dum moreno fechado,
muito fina de corpo. Tinha as pernas e os braços muito longos e uma voz
ligeiramente rouca. Falava com desembaraço, mas escolhendo um pouco os termos,
não raro pronunciando-os erradamente.
- Está aqui há pouco tempo, não é?-
perguntei.
- Não faz um mês.
É... Eu não a conhecia ainda
Vem muito aqui, então?
Muito, muito, não. Mas venho.
Stela levantou-se para apanhar um carretel
de linha e novamente voltou para a tarefa, ao lado de manequim encardido. A luz
do sol, rala, branda, coando-se através da cortina de musselina branca,
caía-lhe aos pés, e na doce penumbra suas mãos ágeis trabalhavam. Tinha os
dedos grossos, marcados de espetadelas,as unhas cortadas bem rentes.
A senhora sua mãe é amiga de Madame Graça?
- indagou depois de trincar a linha preta nos dentes.
Desde menina.
Ah!
Houve uma pausa em que a tesoura entrou em ação.
Muito boa madame, não lhe parece? perguntou
sem me olhar.
- Muito
Tenho gostado muito dela. Nunca manda,
pede. E pede por favor. Não se zanga nunca, está sempre alegre, disposta
animando a gente... Dá prazer trabalhar com uma pessoa assim, não é mesmo?
Achei discretamente que sim, ela apurou mais um detalhe de sua obra,
depois continuou:
- A última patroa que eu tive era dura de
se aturar. Não foi possível aguentá-la mais. Tudo acabava ruim, mal feito. Não
falava melhor com a gente, era como se estivesse lidando com escravos. O senhor
já teve algum patrão assim?
-Não.
Eu nunca tive patrão. Sou estudante.
- ah, sim! ... de quê?
- Verdadeiramente de nada. Estou acabando preparatórios. Acabo este ano.
Depois é que não sei o que vou fazer.
- Deve continuar a estudar, ora! Se formar. Não há nada como a gente se
formar. Meu padrinho sempre dizia isso. Queria que eu fosse professora. Eu
comecei a estudar, mas era um pouco malandra – riu – Mas ia indo. Depois é que
tudo desandou. Meu padrinho morreu, madrinha ficou em dificuldade e eu me vi
obrigada a abandonar os estudos. Fui trabalhar. Como sabia dar meus pontos,
meti-me de costureira. É coisa um pouco ingrata. Trabalha-se demais, não há
folga. Acaba-se um vestido, pega-se logo outro. Mas pode ser que um dia...
-Acredito que sim
Ela levantou a cabeça:
-Tudo depende da sorte, pois não é mesmo?
Quando eu ia responder, o alfinete caiu e me abaixei para procurá-lo.
Ela fez um gesto:
-Deixe!
Mas apanhei –o e entreguei-o:
Aqui está.
Muito obrigada. Mas devia ter deixado no
chão. São mil que caem por dia. De tarde quando se varre a sala, acham-se
todos. É mais prático do que abaixar a todo momento, não acha?
-Sim, é mais prático. Mas para mim agora
foi um prazer...
Ela sorriu:
Há gosto para tudo.
O relógio cantou lá dentro com voz rachada –
quatro horas. E Madame Graça chegava com seu sorriso aberto, seus modos
despachados, sua gordura demasiada. Queixava-se de mamãe.Uma ingrata! Assim
também era demais. Há um ano que não a via ( há menos de quinze dias mamãe
tinha ido visitá-la de noite).Jurava que não poria os pés em nossa casa
enquanto mamãe não fosse vê-la.
-É que mamãe anda muito ocupada, Madame Graça. Muito cansada. É tanta
lida lá em casa...
- Eu sei, histórias... – E me entregando o vestido: Diga a sua mãe que
se não estiver como ela quer é só mandá-lo de volta.
E eu me retirei, não sem olhar
demoradamente, mas disfarçadamente, para Stela, que me sorriu.
Aquele sorriso, aqueles olhos me
perseguiram dois dias, ao fim dos quais nos encontramos novamente. Ela saía às
seis horas da casa de Madame Graça. Às cinco e quinze já estava na esquina
esperando por ela. Uma tremura forte e irresistível sacudia as minhas pernas e
o meu coração – se ela não viesse? Procurava reagir andando de um lado para
outro, fumando cigarro sobre cigarro,
tentando recordá-la, já que suas feições pareciam ter-se desfeito na minha
memória.
Passou absorvida, apressada, não me veria
na certa, se não me adiantasse. As pernas tremiam mais.
- Boa tarde...
Ela abriu um sorriso perfeito e estacou:
- Que surpresa!
Fechando os olhos, plantado à sua frente,
disse quase inconscientemente que a esperava.
- Por mim?
Sim.
Verdade?
Verdade.
Ela amassou a modesta carteira contra o
peito, ligeiramente perturbada e indecisa se continuava parada ou prosseguia.
- Fiz mal?
Replicou prontamente:
- Não
Porque se fiz, não tenha o menor
acanhamento de me dizer. Eu não me zango.
Não! Falo a verdade.
Sinto-me feliz por isto. Imensamente feliz.
Ela pôs-se então a andar e eu perguntei:
- Vai para casa, não vai?
Ela olhava o chão:
- Parece, pelo menos.
Uma sensação agradável de segurança me
enchia todo aí:
- Podia ir mais devagar do que de costume?
Ela continuou com os olhos baixos, mas
retardou os passos.
Passamos a fazer o mesmo caminho todas as
tardes, e cada dia demorávamos mais a percorrê-lo. Ao fim de uma semana íamos de mãos dadas,
perdíamo-nos por mil ruas antes de chegarmos à ladeira onde ela morava, no Rio
Comprido. Nascera ali, numa casinha de três cômodos, atrás de um armazém que prosperara Ali perdera o pai, que era embarcadiço, conhecera o mundo a pamo,
outras gentes. Os japoneses comiam arroz com pauzinhos; os chineses adoravam
filhotes de ratos fritos na manteiga; num lugar não sabia onde, os indígenas
matavam os pais quando estes ficavam velhos; na África, as mulheres é que
trabalhavam, os homens ficavam dormindo em casa, bebendo, fumando e se abanando
por causa do calor! Deixava-a falar e ela falava muito.
Sabia eu por que ela se chamava Stela? ah!
Ria – por causa duma canoa. Foi a primeira canoa que meu pai teve construída
por ele mesmo. Sempre amara o mar, a aventura o desconhecido. Seu desejo era
ver o mundo, conhecer todo o mundo. E um dia foi-se ao mar! Acaba num cargueiro
– o Sereia. Tinha o casco preto, baixo, um ar de navio fantasma, muito
vagaroso. No mar das Antilhas, uma tromba d’água deu conta dele. Não se salvou
ninguém. Eram quarenta homens. Ela tinha oito anos. A mãe ficou como louca, não
queria acreditar. Ninguém jamais pensara que o pai se casasse com ela.
Conheciam- se desde pequenos, tinham sido vizinhos muitos anos na praia de
Paquetá, onde o pai dela era administrador duma caieira. Um dia ele chegou de
uma viagem, foi procurá-la, dizendo que queria certidão dela para tratar dos
papéis. E quinze dias após estavam casados. Um mês depois, ele partiu. Seis
meses mais tarde voltou. Mais quinze dias e lá se foi. Quando veio de novo ela
(Stela) tinha uma semana de nascida, era muito gorda – uma bola! A mãe
escolhera o nome: Lourdes. Ele não disse nada e foi registrá-la. De volta é que
se viu – registrara-a com o nome de Stela.
Tinha ela seis para sete anos, quando ele
veio muito doente de uma viagem. Era um reumatismo muito forte, que quase não o
deixava dormir. Ao fim de alguns dias estava livre das dores, já podia dormir,
mas o médico recomendou que tomasse cuidado com o que fizesse, se possível, um
tratamento mais demorado. Ele tinha
seus cobres juntos, e seis meses pode ficar em casa, tratando-se. Foi um tempo
feliz! Recordava-se comovida, umas lágrimas furtivas nos olhos. Ele era muito
bom! Amava-a muito. Passeavam juntos, iam à praia, ao cinema, comprava-lhe uma
porção de brinquedos, enchia-a de sorvetes, balas, gulodices, vestidos novos. O
padrinho, que era engenheiro, ralhava com ele: você acaba estragando esta
pequena de todo jeito. Ele ria: estragava o que era dele. É, retrucava o
padrinho, estraga o que é seu, mas quando for embora quem aguenta são os que
ficam.
Quando ele morreu, a mãe ficou alucinada,
queria morrer também. O padrinho protegeu-as. A mãe trabalhava como uma moura,
lavando para umas famílias melhores das redondezas. Era ela,Stela, no
princípio, quem entregava a roupa. Mas estava na escola. Fora um pouco avoada
na escola. Muito distraída, diziam os professores. O Padrinho queria que ela
fosse depois para a Escola Normal, saísse professora, tivesse o futuro
garantido. Era bom. Mas, infelizmente, o padrinho morreu de repente, do
coração, quando ela ia acabar o curso primário, aos quatorze anos. A madrinha
ficou mal de vida. Era de São Paulo. Voltou para lá, pois tinha ainda os pais
vivos. Adeus, estudos! Foi obrigada a trabalhar. Mas não vai lavar. A mãe não
consentiu. Fosse costurar. Dona Amélia costurava para a vizinhança. Tinha boa
freguesia. Aceitou-a como aprendiz. Três meses depois estava afiada. Costurar é
fácil. Um pouco de jeito, um pouco de paciência, um pouquinho de gosto, o resto
vai sozinho. Mas Dona Amélia não queria ainda pagá-la. Era uma exploração!
Procurou outro lugar. Foi para um ateliê no Estácio. Depois – a patroa era
muito implicante – saiu e foi trabalhar na Mariposa Azul, na Rua Sete.
Aguentou-se um ano aí, mas trabalhava demais, comia mal, gastava muito dinheiro
em bonde... Assim, tratou de arranjar um emprego mais perto, no bairro mesmo.
Esteve pouco tempo nele. Também não havia pequena que parasse lá. Os donos eram
uns gringos, gente danada! Só vendo. Andara ainda em duas outras casas, agora
estava com Madame Graça. Madame era muito boa. Lá se iam três meses.
Uma noite, voltávamos do cinema, ela me
disse:
- Não sei por quê tenho vontade de fugir.
Parece que é o sangue de papai.
Eu olhava seu corpo, não
respondi. Mas sentia que ela fugiria mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei
por quê, nada fazia para prendê-la. Aceitava a ideia de fuga como um acontecimento
que não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os seus
olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do mar, o chamado das
ondas de um mar desconhecido, verde, fundamente verde, misterioso.
Sentia-me fraco. Por que não faria nada
para prende-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a amava? Não
sei.
Está tão distante tudo isso, hoje, e o
mesmo mistério perdura.
Por onde andará Stela? Em que mares de
homens se perdeu?"
Às nove horas eu esperava por Stela na
esquina combinada. Era uma véspera de Natal, bastante quente, de um céu muito
claro. Ela chegou e me disse, calma, resoluta, com grande indiferença pelo
destino:
- Aqui estou.
- Querida!
Fomos andando, resolvidos. Tudo estava
preparado por mim, com meticulosidade que me assombrava a mim mesmo. Tinha
tratado o quarto. Tinha discutido com o homem do hotelzinho, combinado a
chegada.
É uma moça direita – dissera ao homem.
–Séria.
Destas vêm cá dúzias.
Era português, com um sotaque muito
carregado, um olhar sórdido que me arrepiou. Rebati com raiva:
- Mais respeito! O senhor está muito
enganado! O homem abaixou-se como um tapete. "Desculpasse-o ... Não tinha
a menor intenção de faltar ao respeito. Mas é que...” Não quis saber de mais
nada. Saí. Estava tudo combinado, às nove, nove e meia, estaria lá com ela.
Fomos indo. Tomamos um bonde, descemos.
Andamos alguns minutos sem dizer uma palavra. Jamais pude saber se era por
entendimento tácito, por medo do destino, ou por nojo antecipado do depois. Sei
que ela me disse, de repente, com a voz mais rouca, os olhos mais verdes,
apertando-me a mão com mais calor:
- Não devia ter vindo.
Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como
se, muda e previamente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente,
ficarmos ali para sempre pregados. A lua é paz, é pálida, e nós tão
pálidos. As horas correm, o barulho do
rio correndo tinha uma tristeza de morte.
Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas,
de preto, escondidas nos xales. Passaram outras pessoas, formas vagas, que não
pareciam deste mundo. E os sinos tocavam, tocavam...
-Vamos? perguntou ela, rompendo um silêncio
que parecia ser eterno.
Não fomos. Ficamos, pregados na pequena ponte, ouvindo o barulho do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na
altura, esquecidos, perdidos, como restos de naufrágio.
(Marques Rebelo)
Marques Rebelo, pseudônimo literário de Edi Dias da Cruz, nasceu no Rio de Janeiro em 1907. Escritor, jornalista, contista, novelista e romancista, publicou inúmeros livros. Crítico da Academia Brasileira de Letras, acabou ocupando sua cadeira nº 09, para a qual foi eleito em 10 de dezembro de 1964. O autor projetara escrever uma grande obra intitulada O Espelho Partido, dividida em 7 volumes. Concebida para homenagear o Rio de Janeiro, que seria o personagem principal, a obra, no entanto, como assinalou Edilberto Coutinho, foi também evoluindo para "a autobiografia, a memória, o cronograma histórico, o cine-jornal e o documentário, e ganhou a forma de um diário". Mas o escritor só conseguiu escrever os três primeiros volumes, intitulados O Trapicheiro (1959), A Mudança (1962) e A Guerra Está em Nós (1968). Os três cobrem o período de 1936 a 1944.OBRAS:Oscarina, contos (1931)
Três caminhos, contos (1933)
Marafa, (1935)
A estrela sobe, (1939)
Três caminhos, contos (1933)
Marafa, (1935)
A estrela sobe, (1939)
Disponível em:http://www.releituras.com/mrebelo_menu.asp
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