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domingo, 24 de janeiro de 2010

Conto - Restos de carnaval - Clarice Lispector



Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este
me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras
de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos
de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu
cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão
extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que
viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando,
como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se
enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa
escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim
explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes
humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era
secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava.
Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam
fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas
11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde
morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas
coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com
avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque
sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que,
mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo
sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital
e necessário porque vinha de encontro à minha mais
profunda suspeita de que o rosto humano também fosse
uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada,
se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava
no contato indispensável com o meu mundo interior, que
não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas
de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com
os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com
minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para
carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs
para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam
tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos
frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três
dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser
uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma
infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem
forte, passando também ruge nas minhas faces. Então
eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão
milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me
fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que
a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha
e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso
comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa,
com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma
flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia
tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel
crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente
que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado:
sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga –
talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo
desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que
sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma
fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele
carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que
sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade.
Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha
amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia
usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se
derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas
– à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos
nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na
rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus
nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia
só existir por causa das sobras de outra, engoli com
alguma dor meu orgulho, que sempre fora feroz, e aceitei
humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único
de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo
no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até
de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não
passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram
três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel,
eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas,
eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender
agora: o jogo de dados de um destino é irracional?
É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem
batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito
de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa
e mandaram-me comprar depressa um remédio na
farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda
nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão
exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval.
A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se,
minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa
tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia
lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas,
eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo
uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era
uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados.
Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar
alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave
de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa
agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar.
Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava
um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim
e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira
e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete:
por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem
falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo
resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido:
eu era, sim, uma rosa.

Conto publicado no livro
Felicidade Clandestina, Ed. Rocco

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