Tirei daqui
A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se coloram palpitantes. desenrolou a tromba . E inclinando o corpo para frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor.
Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino riso negro debruando-lhe as asas.
_ Deve ser uma borboleta jovem - disse Maria Camila.
_ Jovem? - repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.
_ Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força ... Haverá tanto suco assim?
_ Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? Ejá está murchando - disse a mulher prendendo com o alfinete do
_ Maria camila voltou-se para janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim.
No céu azul- claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar.
_ Você ainda não pregou essa alça, Matilde?
_ Não sei onde o botão foi parar.
_ Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! - pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. baixou o olhar até a roseira. _ A gente vai clareando à medida que envelhece, mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.
_ E essa borboleta ainda...
_ Deixa - atalhou Maria Camila. uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam. _ Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida.
_ Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa.
_ É melhor deixar.
A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com um olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro. da casa vizinha. Suspirou.
_ Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?
_ Maria Camila concordou co um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as mãos cheias de sardas.
_ É a mesma.
_ Acostumou - disse a mulher num tom indiferente.
Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. _ A senhora não quer que traga o chá?
_ Estou esperando a menina.
_ Mas a que hora ficou de aparecer?
_ Às cinco - disse Maria Camila apertando os olhos.
Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. _ Às cinco em ponto.
_ Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro.
_ Essa menina... _ E a empregada fez uma pausa para ajustar para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: _ Eu conheço ?
_ Não, não conhece.
_ Quantos anos ela tem?
_ Uns dezoito.
_ Mas então não é menina!
Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos.
_ Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa., tinha que ser essa rosa.
_ Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!
Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.
_ Chega a ser obsceno...
_ Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfumes - prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.
Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva. Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor. Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão que olhara para a rosa.
_ Ela é conhecida do doutor?
_ Quem ,Matilde?
_ Essa moça que vem tomar chá...
_ Trabalham juntos - disse maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias . _ Ela está fazendo um estágio no laboratório.
_ Estágio?
_ Sim, estágio.
_ A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.
_ E a senhora conhece ela?
_ Já vi de longe.
_ É bonita?
_ Não sei, Matilde, não sei.
_ Estágio - repetiu a empregada. - Então é essa que às vezes telefona pra ele.
_ Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elemntar e tocado sem vontade.
_ Deve ser- sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva Levou-a aos lábios que estavam lívidos. - Deve ser.
_ Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ele.
_ São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens - acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. - Esse menino era melhor no violino, não era?
A empregada fungou, impaciente.
_ Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa...
_ Quem foi que disse?
_ A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.
_Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechada.
_ Ele tocava melhor violino.
A mulher fez uma careta. E ficou seguindo com um olhar gelado. Uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol.
_ Como é que ela se chama? Essa do chá...
O menino interrompeu o exercício. O Zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto. Maria Camila respirou com esforço.
_ Acho que estou gripada.
_ Gripada? - E a mulher apoiou o queixo nas mãos. _ a senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?
_ Não, não é preciso - disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: _ Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?
_ Mas se não sei dele...
_ Pegue um na minha caixa, já disse.
A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. chegou a abrir a boca. E enveredou para o interiro da casa.
Maria Camila relaxou a posição tensa. olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas. " Que é que eu faço agora?", murmurou inclinando-se para a rosa. "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer! ..." Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. "Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga! ...
A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.
_ Não achei botão igual. Posso pegar este amarelo?
Maria camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó.
Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.
_ Pregue esse mesmo.
A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.
_ É o mais parecido que achei.
_ Está bem, esta bem - repetiu a outra reabrindo o estojo. passou a esponja em torno dos olhos. Examinando as mãos. - Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado...
_ O céu parece brasa, que bonito!
A gente vai ficando rosada também - disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: _ Acho a vida tão maravilhosa!
_ Maravilhosa?
O menino parou de tocar. maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia
_ Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.
_ Mas é só a senhora e ela...
_ O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça - acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. respirava ofegante. _ quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.
_ Passos ressoaram na calçada. quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta do pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:
_ Deve ser ela... É ela! - sussurrou excitadamente. - É ela!
Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.
Lygia Fagundes Telles
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