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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Um chá bem forte e três xícaras (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

      




                                                       Tirei daqui



       A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se coloram palpitantes. desenrolou a tromba . E inclinando o corpo para frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor. 
      
       Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino riso negro debruando-lhe as asas.  

          _ Deve ser uma borboleta jovem - disse Maria Camila.

          _ Jovem? - repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.
    
        _ Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força ... Haverá tanto suco assim?

            _ Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? Ejá está murchando - disse a mulher prendendo com o alfinete do

               _ Maria camila voltou-se para janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim.
No céu azul- claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar. 

               _ Você ainda não pregou essa alça, Matilde?
            
               _ Não sei onde o botão foi parar.

               _ Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! - pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa.  baixou o olhar até a roseira. _ A gente vai clareando à medida que envelhece, mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.

             _ E essa borboleta ainda...

            _ Deixa - atalhou Maria Camila. uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam.  _ Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida. 

              _ Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa. 

              _ É melhor deixar. 

          A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com um olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro. da casa vizinha. Suspirou.

               _ Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?

             _ Maria Camila concordou co um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as mãos cheias de sardas. 

              _ É a mesma. 

              _ Acostumou - disse a mulher num tom indiferente.
Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da  patroa. _ A senhora não quer que traga o chá?

               _ Estou esperando a menina. 

              _ Mas a que hora ficou de aparecer?

              _ Às cinco - disse Maria Camila apertando os olhos. 
 Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas.  _ Às cinco em ponto.

            _ Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro. 

               _ Essa menina... _ E a empregada fez uma pausa para ajustar para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: _ Eu conheço ?

              _ Não, não conhece.

             _ Quantos anos ela tem?

             _ Uns dezoito.

             _ Mas então não é menina!

             Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos. 

              _ Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa., tinha que ser essa rosa.

              _ Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!
Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância. 

                 _ Chega a ser obsceno...

                 _ Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfumes - prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.

            Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva.  Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor.  Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão que olhara para a rosa.

                _ Ela é conhecida do doutor?

                _ Quem ,Matilde?

                _ Essa moça que vem tomar chá...

               _  Trabalham juntos - disse maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias . _ Ela está fazendo um estágio no laboratório.

                _ Estágio?

                _ Sim, estágio. 

                _ A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.

                _ E a senhora conhece ela?

                _ Já vi de longe.

                _ É bonita?

                _ Não sei, Matilde, não sei.

               _ Estágio - repetiu a empregada. - Então é essa que às vezes telefona pra ele.

               _ Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elemntar e tocado sem vontade. 

                _ Deve ser- sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva Levou-a aos lábios que estavam lívidos. - Deve ser.

                  _ Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ele. 

                     _ São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens - acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos.  Fez um gesto brusco. - Esse menino era melhor no violino, não era?

                    A empregada fungou, impaciente.

                   _ Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa...

                    _ Quem foi que disse?

                 _ A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.

              _Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechada. 

               _ Ele tocava melhor violino. 

               A mulher  fez uma careta.  E ficou seguindo com um olhar gelado. Uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol. 

                _ Como é que ela se chama? Essa do chá...

               O menino interrompeu o exercício. O Zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto.  Maria Camila respirou com esforço.

                _ Acho que estou gripada.  

                _ Gripada? - E  a mulher apoiou o queixo nas mãos. _ a senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?

                   _ Não, não é preciso - disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: _ Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?

                     _ Mas se não sei dele...

                     _ Pegue um na minha caixa, já disse.

                     A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. chegou a abrir a boca. E enveredou para o interiro da casa. 

                 Maria Camila relaxou a posição tensa. olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas.  " Que é que eu faço agora?", murmurou inclinando-se para a rosa. "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer! ..." Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. "Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga! ...

                 A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.

                 _ Não achei botão igual. Posso pegar este amarelo?

                 Maria camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. 

                 Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.

                  _ Pregue esse mesmo.

                  A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos. 

                  _ É o mais parecido que achei.

                  _ Está bem, esta bem - repetiu a outra reabrindo o estojo. passou a esponja em torno dos olhos. Examinando as mãos. - Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado... 

                   _ O céu parece brasa, que bonito!

                   A gente vai ficando rosada também - disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: _ Acho a vida tão maravilhosa!

                    _ Maravilhosa?

                     O menino parou de tocar. maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia  

                    _ Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

                     _ Mas é só a senhora e ela...

                     _ O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça - acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. respirava ofegante. _ quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.

                      _ Passos ressoaram na calçada. quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta do pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:

                       _ Deve ser ela... É ela! - sussurrou excitadamente. - É ela!

                       Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.

Lygia Fagundes Telles    






    

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