Pages

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A menina sem palavra

      Oi, Turminha!

Para quem gosta de ler contos, tenho uma dica valiosa: A menina sem palavra - Histórias de Mia Couto. Você logo descobrirá que ler Mia Couto e perder-se em meio a palavras, encontrar -se nos significados e encantar-se nas imagens.  Divirta-se com a leitura do conto.

Abraço!

                            
A Menina Sem Palavras

Autor: Mia Couto
Assunto: Contos e Crônicas
Editora: Boa Companhia
Sinopse:
Os dezessete contos desta antologia foram escritos em fases distintas da carreira do escritor Mia Couto e compõem um panorama surpreendente do universo infantil em Moçambique. Acostumados a reconhecer nos povos africanos a violência e a miséria, o leitor encontrará nessa seleção uma delicadeza que não se vê nos relatos oficiais. As histórias selecionadas mostram a complexidade que move as relações familiares, a orfandade em um país que viveu por anos em guerra, a realidade das crianças submetidas ao trabalho infantil e os resquícios da luta pela independência. 
Mia Couto é um prosador bastante sensível às complexidades da vida e um escritor que constrói as narrativas inspiradas na linguagem oral, revelando a sua influência e admiração pelo nosso Guimarães Rosa, sem contar a presença do fantástico e do religioso em suas histórias. 


A menina sem palavra

                                                                                 ( segunda história para a Rita)


       A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta atual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.

      Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:

         _ Fala comigo, filha!

          Os olhos dela deslizaram. A menina beijou a lágrima. Gostoseou aquela água salgada e disse:

          _ Mar...

          O pai espantou-se de boca e orelha. ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que se ouvisse. Disse mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. mas mais nenhum som entendível se anunciou.

           O pai não se conformou. pensou e repensou e elabolou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade. 

            A menina chegou àquela azulação e seu peito de definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrima interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça. 
              
                _ Venha, minha filha!

                Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente se perde do chão. Toda a terra entre no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu.  O pai se admirava , feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?

                 _ Vamos, filha! Caso senão as ondas nos vão engolir.

                O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para a distrair. Depois decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de rocha? 


               Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:

               Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos,  com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa. 

             Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engoido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:

              _ Pai!

               Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim, essa foi uma vez. 

              Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido o fio da meada dentro da sua cabeça. ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:

               _ Agora, é que nunca.
         
            A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu temedroso . Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda a extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar . um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
               
                _ Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor...


                Ao invés de recuar a menina  se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida  se fechou, instantânea. E no mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha.

               _ Viu, pai? eu acabei a sua história!

               E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.  


A MENINA SEM PALAVRA - Histórias de Mia Couto
            
     

                 
              
           

Nenhum comentário:

Postar um comentário