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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O último dia de nossas vidas


Estava assentada em minha cadeira de balanço quando de repente ouvi o som que vinha da rua. Era som de carnaval, trazia seus gritos, apelos, risos – não sei se falsos ou verdadeiros.

Nunca fui dada a essas festas obrigatórias, e o Carnaval para mim soava tão falso – era o vidro que se quebrou. Acredito que esse pensamento fez-me voltar no tempo, sem máquina, fui transportada àquele dia que para mim seria decisivo. Sim, naquele dia obtive tal convicção – não sei se essa palavra existe, já que há controvérsias...

Era mocinha, quase mulher, faltavam-me para isso, pequenos detalhes femininos. Estava apaixonada – sabe o que é isso? Entusiasmada. A gente confunde as palavras ou lhes dá a conotação que bem quer, sei lá. Lembro-me de que era sábado de carnaval – o chamado Sábado de Zé Pereira- bem no meio da Rua da Concórdia, cercada por muita gente, estava eu e aquelas pessoas fantasiadas.
Eram rostos, pintados, mascarados, embriagados, perdidos, borrados, derrotados. Uns tinham dentes, outros não. Era um aglomerado de carne mole, pegajosa e suada. Estavam lá: a cercar-me, empurrar-me, confundir-me. Eu sentia cheiros - álcool era o maior deles. Mas tinha os suores, vômitos e urinas, aqui e ali. E aquela multidão me arrastava – para o inferno – pensava eu.

Como vim parar aqui? Perguntava-me. Por que mamãe deixou que eu viesse? Por que não me proibira? Eram perguntas com respostas únicas e objetivas.

Naquele carnaval, eu já iria completar 21 anos, já estava quase noiva, como mamãe poderia impedir-me? Ah, como senti falta de seu domínio sobre mim.

Como tinha dito, não gosto de festas que exigem atuações artísticas. Sou meio preguiçosa para isso. Não gosto de deixar de ser eu. Entende? Sempre fui extremamente verdadeira. Nunca soube mentir ou fingir – mesmo que fosse para agradar. Tornei-me assim, desagradável. Digo isso porque as pessoas não gostam daqueles que têm existência em si mesmos, preferem as fantasiosas. E, eu, nunca quis cecear-me de mim. Fui sempre toda eu mesma, incompreendida, mas eu.

Abro um parêntese para falar de mim. Nunca senti falta dos outros, digo, de ser igual aos outros. Quando tentei sê-lo para agradar, desagradei-me. Desisti, então. Fecho - parêntese.

Meu namorado - quase noivo - naquele carnaval, falara-me assim:
-“Vou para o Galo da Madrugada, você irá comigo ou irei sozinho? - como eu desejara ter forças para dizer-lhe: “sozinho, vá sozinho! - Fui fraca. Gelatinosa, sabe? Respondi:

_ Vou, vou eu, contigo.

Às vezes, pergunto-me, e não me vem uma resposta clara, donde vem o medo? Medo que congela pés, mãos e respostas?

Estava ali, na rua da Concórdia, sendo levada nem pisava no chão, literalmente, era arrastada. O sol queimava-me a pele branca, já misturada a tantas outras corres. Meu noivo? Sentado num batente – bêbado. Ele estava bêbado – não o batente.

Depois, regressamos à casa de meus pais. Sobrava-nos o cansaço, o espaço, o silêncio... Era o que deveria ser o último dia de nossas vidas. Não entendi assim... Desculpas! Desculpei.
– Que mania que nós temos de desculpar tudo – até aquilo que nos ferrou profundamente!

Arrasto-me, há muito, perdoando os carnavais. Lutando contra as máscaras. Pois já é tão difícil vencê-las todos os dias. - O ser humano vive usurpando máscaras para si. Inevitável não deparar com elas. Uma para cada ocasião. Tenebroso isso!

Aquele som, que escuto agora, aqui sentada na minha cadeira de balanço, não me convida a “brincar”. Já conheço aquelas risadas, cores, cheiros, apelos... Eles não me comovem mais. O vidro se quebrou.


(Helena Caldas)





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