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domingo, 14 de fevereiro de 2010

Somente menina


Fui menina feliz, saltitante. Soube ser criança, brincar das brincadeiras mais infantis. Ah, como eu brinquei. Lembro-me de que não parava em casa, já que à porta, sempre aos berros, estava outra criança a gritar-me o nome:
-Dinha, vem brincar!
– Dona Inês, deixa Dinha brincar?
E eram horas de brincadeiras. Brincadeira da boa, daquelas em que se usa a imaginação : éramos pobres e ricos, passávamos anéis e segredos de mão em mão, obedecíamos às ordens do rei, e de repente parávamos para contar e ouvir estórias. Estórias, por vezes tenebrosas. Depois, ia dormir com medo, coberta dos pés à cabeça.
Se eu era feliz? Parecia. Menina magricela, cabelos encaracolados, na maioria das vezes preso, em rabo de cavalo ou tranças duplas, que caiam sobre o peito ingênuo. Tinha aquela testa grande, que se acentuava pelo brilho do que sobrara da brilhantina. Minha mãe penteava os meus cabelos, com esmero. Era uma longa tortura para nós duas - Tem cabelo para duas cabeças, essa menina – dizia ela.
O meu físico não era espetacular, equilibrava-me nas pernas finas. Ah, mas o meu sorriso era grande, como um lago perene que brilhava ao sol. Meus cabelos avermelhados completavam aquele calor que saia de mim, germinando aquela paz que só as crianças têm.
Em casa, casa cheia. Minha avó querida e minha mãe. Como era bom ter três mães- já que dizem que avó vale por duas mães.Como já disse, a nossa casa vivia cheia, principalmente nos momentos de refeição – almoço, lanche, jantar. Era só sentar à mesa e escutar as palmas. Antigamente não tinha companhia. Minha mãe as recebia com alegria. Era uma anfitriã nata, a minha mãe.
Eu espevitadíssima queria ser grande, interessava-me as conversas dos adultos. Eu era velha, sendo criança. Naquela mesa, lá de casa, aprendi a valorizar os momentos das refeições - aqueles em que sentamos para dividir comida, segredos, risos...
Era menina obediente, muito mais flor. Gostava dos elogios – viessem de qualquer direção que fosse. Então ajudava os pobres, os velhos, as crianças... Ah, eu frequentava à igreja aos domingos – sempre amei muito Jesus.
Certo dia, minha avó chegara a casa com um presente para mim. Ela era como eu, adorava ir à cidade, e na volta trazia sempre, sempre mesmo, um presente – acarajé, pão em formato de lagartixa, tantas coisas... Nesse dia, ela trouxe um pacote enrolado com barbante branco e vermelho, abri-o, lá estava um crucifixo. Dormia nele um menininho, deitado de lado com as mãos embaixo do rosto e as perninhas dobradas. Dava para ver naqueles pezinhos pequeninos sombras das cicatrizes que vieram, quando se defrontou com o mundo. Todas as noites, ajoelhada, orava àquele menino, - momentos de flor.
Eu também era espinho. Antigamente não se ganhava presentes como hoje. Não! Havia dias marcados para essas gentilezas. Aniversário, dia das crianças, Natal. As coisas aconteciam para mim nessa ordem. E como eu esperava por esses dias...
Certa feita, meu pai trouxe duas bonecas. Sim, duas. Uma para mim e outra para minha tia Socorro - a Socorrinho. Quatro anos mais velha que eu, morava conosco. Era o maior dos meus infernos pessoais. Ela odiava-me, – sempre tive essa “sorte” a de ser odiada imerecidamente, digo isso porque nada fiz para que aquele ódio nascesse naquele coraçãozinho negro, onde brilhava a inveja. Ou fiz?
Voltando às bonecas. Geni – esse era o nome dado a elas pela Estrela- o fabricante. Abrimos os nossos pacotes e ... Olhei a minha , mas ao olhar a dela, gritei: Eu quero aquela!
Geni era uma boneca parecida com a Barbie, tinha o corpo definido das modelos. A minha era loira. Perdão loiras, mas nunca gostei de cabelos amarelos. Eu quis a ruiva, que infelizmente era dela – da Socorrinho.
Imediatamente, ela sentiu-se vingada. Tinha em mãos, literalmente, aquilo que eu queria. Socorro tinha os pais separados. Não tinha casa, pois vovó morava conosco. E eu cheguei para tomar o resto - a atenção de todos. Aquele coraçãozinho de quase nove anos, endureceu. Percebeu ser a hora da vingança. Ela não entregaria a boneca, que só ela tinha.
Não me farei de boazinha, mas a Socorrinho implicava comigo. Se ganhava um chiclete e tinha que dividi-lo. Partia-o assim: a maior parte era a dela, bem maior. Na hora de tirar fotos não queria a minha presença. Detestava-me a Socorrinho.
Mas voltando à cena : Eu gritava “_ Quero aquela, a da Cocorro!” Meu pai, contrariado, pediu a minha mãe que resolvesse o impasse. Mamãe implorou. Ela? Ela disse:
_Nãããão dou!!!!
Fui dormir de olho inchado, soluçava. Era a primeira vez que algo dava errado. No meu egoísmo, de quatro anos - não percebi o que Socorro sentira. Mais nova, pus todos da casa contra ela. Ouvia-se: “- Que custa você mais velha trocar com ela. Ela é pequenininha.”
Mais tarde, nasceu em mim o resquício do pecado original, que borbulha em nosso sangue, sempre à espera do momento certo – a vontade de vingança. Quanto mais eu olhava para minha Geni, mais a detestava. Ela tinha cara de mau, de safada. E do fundo da alma desejei a ruiva.
Todos dormiam, peguei a minha boneca feia e fui em direção à cama de Socorro. Peguei a sua boneca também. Olhei para ela – tão forte com aquele cabelo vermelho que escorria até a sua cintura. Ela olhou para mim também, como a se lamentar por fazer parte do pacote errado. Ela também desejara ser a minha companheira de brincadeiras. Mas uma fatalidade nos afastara.
Foi então que nesse momento me veio a idéia fatídica: a de queimar o cabelo da boneca. Coitada pagaria pela dona. Acendi uma vela, penteei pela última vez a Geni ruiva. Coloquei seus cabelos sobre a chama da vela, vi-os encolhendo. Arrependida, soprei-o para que fogo apagasse. Chorei! Os cabelos outrora tão lindos ficaram duros e com pontinhos pretos. Só então pensei: “Vou levar uma baita surra!”
Veio-me outra idéia do mal: “Vou queimar os cabelos da minha também – aquela feia – assim, mamãe vai me bater menos.” Mas o processo foi diferente, ao passar os cabelos loiros pela chama senti prazer- ela era feia mesmo!
No dia seguinte, gritos, acusações, choro. Apanhei. Socorro não quis mais a sua boneca, já era meio moça mesmo. Jogou-me na cara. Doeu!
Mamãe deu-me uma pisa de cinturão merecida, mas bateu com pena. Afinal, era culpada por ter escolhido para mim a Geni Loura. Mas minha avó, coitada, abatia-se tanto quando me via apanhar. Tive dó dela , -adoecia por mim.
Eu? Eu terminei com as duas bonecas. Depois que passara a dor da surra. Sentei-me para brincar. Tinha a ruiva para esposa do gatão, e a loira para amante. Assim começava o meu primeiro romance com triangulo amoroso.

(Helena Caldas)

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