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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Aula de Português

A aurora da minha vida 
Personagens: Professor, Gêmeas, Adiantada, Gorda, Puxa, Quieto
Local: uma sala de aula



                                                 Tirei daqui


Aula de Português


Professor (Olhando o horário.) — Como? Temos menos aulas neste nosso último ano?
Gêmeas — Dá licença, professor? É menos ou “menas” que se fala?
Professor — Já não basta vocês usarem esse repolho na cabeça (referência às fitas
brancas que as gêmeas usam), que não tem nada a ver com o uniforme
e ainda me fazem perguntas cretinas?
Gêmeas — Nós temos licença da diretoria para isso.
Adiantada — Será que eu posso sair mais cedo hoje?
Professor — A senhora não precisa ouvir a explicação? Já sabe tudo?
Adiantada —  Eu sei. Eu já sei análise. Minha mãe me pôs numa professora particular e ela já me ensinou tudo. (A classe vaia.) Vocês estão é com inveja.
Posso? A minha mãe está me esperando. Nós temos que ir na penteadeira que hoje é o casamento da minha prima.
Gorda — Se ela sair a gente também pode.
Puxa — Quem ela pensa que ela é?
Quieto — Vê se não fala cuspindo no meu ouvido?
Professor — Quieta, classe. Será que eu ouvi bem? Repita o que a senhora disse, por favor. de pé, lá na frente, por favor?
Adiantada — Ué… Eu disse que hoje é o casamento da minha prima e eu e a minha
mãe temos que ir fazer penteado na penteadeira.
Professor — Repita, por favor. ir aonde mesmo?
Adiantada — Ir na penteadeira. eu já falei. […]
Professor — Se eu deixasse a senhora sair, a senhora iria à penteadeira. Ir a algum lugar, ir ao cinema, ir à escola. À: contração da preposição “a” com o artigo “a”. Entendeu bem?
Adiantada — Isso eu sei melhor que qualquer um aqui. (Vaias.) Dor de cotovelo! O que vem de baixo não me atinge.
Classe — Senta no formigueiro, então.
Classe — Isso mesmo.
Professor — Quieta, classe! Que algaravia é essa? Negado o seu pedido, mocinha.
No período “Jesus, que ama os pequeninos, atendeu ao pedido da criança”, temos duas orações, uma principal e uma subordinada.
Adiantada — A minha mãe vai me matar se eu perder a hora. ela marcou com a Satiko.
Professor — Que é que a senhora está resmungando? Não adianta porque não vai sair mesmo antes do sinal. Nesta classe, na minha aula, pelo menos, eu sou a oração principal. e a senhora é a subordinada.
Classe — Ela é a oração subordinada! Fala, oração subordinada!
Gorda — Quando ele fica bravo fica mais lindo ainda.
Professor — Silêncio, classe.  eu ouvi alguém falando alguma coisa de “lindo”? Quem foi?
Gorda — Eu não fui.
Classe — Ah, é… Fui eu. então fui eu. Não, fui eu.
Gorda — Vocês querem parar? […]
Professor — Eu posso saber o que está acontecendo na classe?
Gorda — Eles é que ficam me enchendo.
Professor — Enchendo? Algum motivo deve haver.
Gorda — Não há nada. o senhor dá aulas particulares? […]
Professor — […] Agora não é hora de falar bobagens. o seu livro, por favor.
Gorda — É só brincadeira. A gente não pode nem brincar que todo mundo já malicia. É só brincadeira. eu posso ir ao banheiro?
Professor — Não antes de eu ler o que está escrito no livro. espero, ao menos, que o português esteja correto. (Lendo.) “Você, meu amado e indolatrado mestre, és responçável por aquela que cativas.” três erros: um de concordância — “você és”;  “indolatrado”; e responsável com ç? Desde quando?
Gorda — Eu não falei que era só de brincadeira?
Professor — Os erros também são de brincadeira?
Adiantada —  Ela me disse que passa todo dia em frente da casa do senhor e espia pela janela.
Gorda — Mentirosa. o senhor gosta de doces? eu faço cada um tão gostoso! De amarga, chega a vida, não é?
Puxa — Ela falou que a mulher do senhor é faladeira.
Professor — Não estou interessado nem em doces nem em fuxicos. A senhora tem mais algum problema? […]
Gorda — […] O meu problema é a inveja dessa gente. o senhor quer saber o que eles falam do senhor? Agora, também, eu vou contar tudo. chega de ser boazinha. Vou falar tudo, tudo.
Quieto — Eu nunca falei nada. Não gosto que me metam em encrenca.
Gêmeas — Você vai ver só uma coisa.
Adiantada — Fica quieta. [...]
Gorda — Não. Agora é que eu falo mesmo. eles falaram que o senhor era padre, excomungado, que o casamento do senhor não vale, que o senhor usa óculos escuros porque está escondendo o olho de vidro… […] E eu ainda defendi o senhor. A minha mãe conversou com a sua senhora. E ela me disse que ela é muito distinta. É verdade?
Gêmeas — [...] E não foi distinta que ela falou que a mulher do senhor era.
Professor — Que foi que ela falou da minha mulher?
Gêmeas 1 — Que a mulher do senhor é magricela.
Gêmeas 2 — Que o senhor é pão-duro, que não compra comida.
Gêmeas — E que o senhor atrasa o pagamento da empregada.
Quieto — Posso sair que eu não estou me sentindo bem?
Professor — Vai, vai. (Quieto sai.) Pelo que estou vendo, vocês sabem da minha vida até melhor do que eu. Agora, eu é que quero saber quem sabe todas as funções do que. chamada oral para a classe inteira.
Puxa — Gorda, você vai ver uma coisa. […]
Gorda — Posso falar com o senhor depois da aula?
Professor — A senhora quer ganhar outro zero? Sente-se já.
Adiantada — Você é louca? Fica quieta. Não desconfia?
Gorda — Desconfiar de quem? Dele? Quem ama maltrata.
Professor — Para fora, senhorita. (Gorda sai. O professor aponta a Gêmea 1.) A senhorita.
(toca o sinal.)
Gêmeas 1 — Ufa! (Sai o professor. A Gorda sai atrás.)
(Escuro)

(Naum Alves de Souza. A aurora da minha vida. São Paulo: MG editores, 1986. p. 82-8.)

Glossário
Algaravia: som de muitas vozes juntas, vozerio; confusão (sentido
figurado).
Aurora: claridade que anuncia a manhã; despontar da vida, infância
(sentido figurado).
Maliciar: interpretar de maneira maldosa.
Penteadeira: cabeleireira.


De Naum Alves de Souza , peça em dois atos , encenada pela primeira vez em 1981, a comédia se situa em uma sala de aula da década de 70.

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