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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Inácio da Diná

                                           flickr.com/photos/af_rodrigues/2183721143/

Uma casa (?) de madeira caindo aos pedaços em alguma das margens do rio Capibaribe. Numa das margens? Coisa de grande monta escrever assim. Talvez alguma área de lama em algum braço morto do rio. Um pedaço de mangue ainda não aterrado em nome do progresso. E, sobre o progresso, nestes espaços, para que falar? O mau cheiro das águas parecia vasculhar o perfil do casebre e dos outros casebres alinhados em torno. Qualquer olhar a se nortear pelo espaço afora, conseguiria ver ao longe os grandes edifícios quase envoltos pela penumbra do entardecer.
Um bulício de gente. Ordens. Militares fardados. Mulheres. Umas em prantos. Outras falando coisas por falar. Homens maltrapilhos, descalços. Crianças de barrigas inchadas, nuas, magras. Na realidade, tudo em olhos de espanto. Olhos de comiseração. Olhos de fome e, por que não dizer, olhos de miséria e desconfiança? Policiais militares. Policiais civis. Homens de branco saindo do casebre. Um corpo envolto num lençol sujo. Um rosto de menina. Olhos arregalados injetados de sangue.
E sangue. Tudo sangue nessa periferia cidadã. E o rio sujo. O braço morto do rio apresentando o trágico: a vida zumbi de homens e mulheres e meninos e meninas. Contraste com os homens fardados, os homens de branco, Contraste com o fumo hollywood, carlton em mistura com o fumo barato e às cachimbadas dos velhos mais distantes, acocorados, catando coisas invisíveis na lama marginal.

E aos olhos de Inácio, o corpo ensangüentado de Diná envolto no lençol sujo. Os cabelos de Diná: as tranças caídas e se balançando ao vento. E aos olhos de Inácio, as imagens do homem: nu e bestificado em cima do corpo da irmã, subindo e descendo, subindo e descendo, fazendo o sangue escorrer no chão de lama. Subindo e descendo, sem ligar aos gritos, sem ligar aos movimentos ásperos de fuga do pequeno corpo de treze anos.

E, aos olhos de Inácio, o olhar do homem. A faca nas mãos, gestos rápidos de fuga, vestindo-se, ameaçando-o, batendo-lhe no rosto com a palma da mão direita, suada, sangrando de alguma mordida da Diná. Diná se escondendo como um pequeno animal assustado. Um cãozinho que houvesse sofrido uma grande surra e, depois, o grito, o pulo sobre o homem, a mordida na garganta e Inácio vendo a faca subindo e descendo, subindo e descendo, subindo e descendo e o corpo da menina no mole, mole, caindo sobre a lama.

Que fazer com o garoto? Levá-lo. Para onde? Nada de perguntas idiotas! O menino não tem ninguém por ele. É órfão. É de menor idade. Para a Fundação? Não. Juizado primeiro. Vamos ver se ele nos diz alguma coisa.

Dizer o quê? Não conhecia o homem. Se era dali do meio deles? Não. Nunca o tinha visto. Você está mentindo garoto. Não, não senhor, nunca vi ele. Primeira vez hoje. Nunca o vi. Nunca vi ele.

Você vai para a escola, falou a mulher toda cheirosa de perfume. Você vai aprender a ler, escrever, trabalhar. Vai ser um homem. Vai esquecer tudo isso. Aprenderá tudo na escola.

A escola? Que seria aquela escola para os seus onze anos? Muitos meninos. Meninos maus. Meninos tristes. O Carola, que fumava cigarros cheirosos encarrapitado no imenso pé de jaca? O Bonifácio, que metera um canivete nas nádegas do vigilante? O Enildo, que dormia na cama de todo mundo e tinha um jeito de menina? O Espiridião, muito alto, negro como carvão e de quem todos tinham medo e diziam que já “despachara” dois caras da polícia lá pelas bandas do bairro dos Afogados?

A escola? Ele não podia esquecer a escola. A mulher cheirosa de perfume ele lembrava pouco. Só a vira uma vez. Mas a escola ensinara muita coisa. Ensinara a andar macio como um gato. Ensinara a fumar aqueles cigarros cheirosos. Ensinara a usar um canivete. E o Bonifácio fora o melhor dos professores. Aprendera com ele a lidar com as ruas da cidade do Recife, com os edifícios, com as pontes, com os homens, com as mulheres, com os soldados, com os carros…

E com o rio?...

O rio não. Do rio ele tinha medo. O rio lembrava Diná. O sangue de Diná na lama. O rio lembrava a morte. Ele não sabia fazer nada contra o rio. Lidar com homens e mulheres, com os tiras, era muito fácil. Uma vez, um policial civil quase o prendera. Usou de todas as artimanhas, sabedorias do mestre Bonifácio, ofereceu metade do apurado do roubo recente e ficou livre. Os homens são fáceis. As mulheres são fáceis. Mas o rio não é fácil. Nunca o rio, nunca aquele tiro e esse medo de morrer.

Correu pelo calçadão da Rua da Aurora. Escutava atrás dele as fortes pisadas dos policiais e gritos de raiva. Uma sirene aberta fez doer os seus ouvidos. O sangue molhava sua camisa e pingava sobre o calçadão. Se fossem só os homens! Mas agora era tudo! Os edifícios pareciam rir dentro da noite. As ruas metiam medo. Pareciam repletas de fantasmas. Como se apiedando de sua situação a noite escondeu a lua por trás de uma imensa nuvem. Tinha de se esconder logo. Não agüentava mais. Com um salto felino se jogou nas águas escuras. O corpo caiu na lama. Arrastou-se sofregamente e conseguiu se esconder sob a ponte de ferro, deitando o corpo cansado num dos vãos abertos entre duas colunas.

Dormiu e sonhou com Diná. Sonhou com Diná e com a cidade. Os edifícios voando sobre sua cabeça, transformando-se em imagens de demônios. Sonhou com Diná e com o rio. A maré baixa. A maré alta. A maré subindo e nunca descendo. Subindo e nunca descendo. A água tocando seus pés descalços. O frio. O frio. O frio…

Com o corpo meio roído pelos siris ou caranguejos, num dos vãos abertos entre duas colunas, sob a ponte da Boa Vista, com uma bala nas costelas e um sorriso nos lábios, foi encontrado morto às onze horas do dia seguinte, o corpo de Inácio da Diná.

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Rafael Rocha Neto

ESPELHO DA ALMA JANELA E OUTROS CONTOS, Recife 2009 -

Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.

15 comentários:

  1. Como não se encantar com o modo que esse texto nos toca o coração?

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  2. Você é sensível e consegue ir além das palavras.

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  3. Realmente relata a realidade e lembra muito Machado de Assís.

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  4. Fiquei surpreso. Grandemente surpreso ao ver este meu conto INÁCIO DA DINÁ aqui neste blog. Gostaria de entrar em contato com a dona do blog. Abraço. Rafael Rocha

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    1. Quem bom tê-lo aqui. Sou Helena, professora de Língua portuguesa da rede pública e privada. Conheci o conto Inácio da Diná quando fazia especialização em Literatura brasileira na FAFIRE. Estudávamos O Conto e nossa professora Cristina nos presenteou com o texto de um autor pernambucano, dono de um olhar literário e jornalístico fascinante. Desde então, trabalho o texto em sala de aula e é sempre surpreendente a receptividade dos adolescentes que se veem de um lado ou de outro do texto - edifícios / comunidades – um fingindo não enxergar o outro. A leitura é extremamente envolvente, posso dizer até que somos arrastados para a cena do crime e lá ficamos, espiando calados, predestinados como Inácio. O último parágrafo, que soa como o "Bandeira dois" , fecha o texto de forma tão real, tão cotidiana. Difícil adjetivar um trabalho assim.

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  5. Não sabia que meu texto estava sendo interpretado e analisado em sala de aula. Foi uma surpresa interessante. Tens o livro O ESPELHO DA ALMA JANELA? E meus outros lançamentos? Gostaria de colocá-los em tuas mãos. Comunique-se pelo e-mail rafaelrochant@bol.com.br. Abraço. Rafael Rocha

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    1. Eu também, Eduardo.

      Amo o texto e gosto de trabalhá-lo em sala de aula. Ele, como dizes,encanta.

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  7. Conheci o texto essa semana na faculdade, estou no último ano da Graduação de Letras e o Prof. Fábio Brainer levou para uma de nossas aulas, estamos trabalhando com ele em casa, retomaremos o mesmo na próxima segunda.
    Já estou pensando em sua aplicabilidade na sala de aula, pelo perfil dos meus alunos sei que será bem aceito.
    Buscando o texto na internet encontrei o Blog q até então não conhecia, mas pelo que percebi é muito bom.
    Será mais uma página a visitar com frequência.
    Parabéns!

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  8. Oi, Michele!

    Que bom tê-la aqui. O conto INÁCIO DA DINÁ é uma ferramenta maravilhosa para a sala de aula, principalmente a rede pública. Você vai amar os resultados. É um texto espelho, e o espelho teima em refletir o que a gente não quer ver.

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  9. Olá, Helena!

    Amanhã irei trabalhar com o texto na turma do PROIFPE, tenho certeza que o trabalho será bastante produtivo.

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  10. Que legal! O texto é brilhante, posta o resultado para mim. Um abraço!

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  11. Trabalho todos os anos com meu alunos do 1ª ano do Ensino Médio. Esse conto é muito REAL, olhando e comparando com a realidade dos meus alunos

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    1. Que bom! Eu continuo levando o conto à sala de aula, porque é brilhante, emocionante, singular!

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  12. Gostei não, a pessoa fica com um pesar no coração, uma angústia, uma dor

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