Tirei daqui
Naquela aldeia de montanha
perdida entre neblinas, a chuva havia começado há mais tempo do que era
possível lembrar. Só água vinha do céu, em fios tão cerrados que as nuvens
pareciam cerzidas ao chão. As plantações haviam-se transformado em charcos, as
roupas já não secavam junto aos fogos fumacentos, e pouco ou nada restava para
comer.
Reuniram-se os velhos sábios
em busca de uma resposta, e longamente deliberaram estudando as antigas
tradições. - São os cabelos das mulheres - disseram por fim. E obedecendo aos
pergaminhos, ordenaram que fossem cortados. Na praça da aldeia, desfeitas
tranças e coques, soltos todos os grampos, os longos fios que chegavam à
cintura foram decepados rente à raiz, e entregues à chuva. Todos os viram
descer na correnteza, ondulantes e negros. Todos se encheram de esperança,
enquanto as mulheres abaixavam a cabeça deixando a água escorrer em filetes
sobre a pele nua.
De fato, pouco demorou para
que as nuvens levassem sua carga em direção ao vale, desfazendo-se ao longe. E
o sol acendeu-se num céu tão enxuto e limpo que parecia novo. Aquecia-se ao sol
a antiga umidade guardada entre pedras e grotas. Vindas daquele calor, talvez,
daqueles vapores abafados no escuro silêncio, longas serpentes negras começaram
a deslizar para a luz.
Os homens só se deram conta
da temível presença quando os campos abaixo da aldeia já estavam invadidos. Com
asco e horror as encontravam de repente enroscadas no cabo de um enxada, no
fundo de um cesto, ou brilhando entre os sulcos. Eram tantas. De nada
adiantavam caçá-las; cortadas ao meio ou degoladas por facão ou foice
multiplicavam-se, cada parte adquirindo vida própria e afastando-se como se
recém-saída do ovo.
Quase não lhes bastassem os
campos, começaram a deslizar em direção à aldeia. Em breve bastou afastar um
móvel, abrir um armário, para encontrar uma serpente enovelada. Qualquer
cobertor, qualquer travesseiro, qualquer manta ou almofada podia ser seu ninho.
E entre as achas de lenha, entre as talhas de azeite, entre os gravetos e as
cinzas do fogão, entre os grãos nas despensas, por toda parte e em todo canto
cobras ondulavam suas espirais.
- São os cabelos das
mulheres! - exclamaram afinal os aldeões sem necessidade de reunir os sábios. E
as mulheres riram, escondendo o rosto nos lenços e nos xales com que cobriam
suas cabeças. - Acabem com isso! - ordenaram-lhes os sábios. E não se referiam
ao riso, mas às serpentes. E com voz que não admitia réplica, repetiram -
Acabem com isso, mulheres!
Mas como acabar com o
flagelo se lhes faltava o remédio? - responderam as mulheres. E acrescentaram -
Cabelos. Para acabar com esses, precisamos dos nossos. E cabelos elas não
tinham. Parecia inútil procurar. Por baixo dos lenços apenas uma leve penugem
despontava. Nenhuma mulher havia sido poupada. Ainda assim procuraram de casa
em casa, mesmo nas mais distantes, até que, escondida entre as saias das irmãs
mais velhas no fundo de um casebre, encontraram uma menina. Uma menina pequena,
tão pequena que ao tempo das chuvas havia sido confundida com um menino. Uma
menina pequena, com um rabichinho magro.
Desatado o cordão que
prendia o rabicho, os cabelos desceram cobrindo as orelhas. A mãe colheu um
fio, enfio-o numa agulha. Todos olhavam. Todos viram a mãe levantar uma pedra,
suspender a serpente que ali se abrigava e, com pontos firmes, coser-lhe a
boca. Todos viram a serpente afastar-se deslizando ladeira abaixo. O rabicho da
menina já era apenas um fio quando a última ondulação negra desceu a encosta e
a grama fechou-se sobre o seu rastro.
E passado algum tempo, a
serenidade havia voltado à aldeia. Sem que, porém, viesse com ela a alegria. O
frio demorava-se, sem abrir caminho à primavera. As mulheres caminhavam no vento
com a cabeça coberta, todas elas envoltas em panos. As brotações tardavam, as
sementes não germinavam na terra gelada, nem chegavam as aves migrantes.
Ainda fazia frio na manhã em
que a primeira mulher tirou o xale. Sacudiu a cabeça. Os cabelos que haviam
crescido, rodearam-lhe o rosto. E porque aquela havia tirado o xale, uma e logo
outra a imitaram, uma quarta desfez sobre a testa o nó que prendia o lenço,
cabeças de mulheres assomaram às janelas, descobertas. Os cabelos, lisos,
crespos, ondulados, dançavam livres farfalhando como folhas, cintilaram ao sol
que de repente não parecia tão pálido. Em algum ponto daquela manhã, a
primavera pôs-se a caminho.
- São os cabelos das
mulheres - disseram os homens farejando o ar que se fazia mais fino.
E sorriram.
Marina Colasanti
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