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sexta-feira, 24 de julho de 2009

Memorial de Helena

Recordo-me do meu primeiro dia na escola. Eu fiquei tão feliz .... E essa felicidade dobrou de tamanho quando eu vi a minha farda. Era incrível – uma blusa branca de tergal, uma saia de pregas, azul-marinho, sapatos pretos e meias brancas. Eu estava liiiiiinda! Mamãe fez-me duas tranças. Eu as usava para frente. Naquela manhã , eu escutava o cantarolar do meu coração.
A escola era pequena, meus colegas de classe eram também os amigos das brincadeiras de rua. A professora, severa, chamava-se Anunciada. Foi ela quem me anunciou a profissão que, mais tarde , eu mesma abraçaria com o mesmo amor que aquela mulher abraçara.
A minha alfabetização deu-se naquela junção e repetição de letras. Li aquelas cartilhas em que as vogais apareciam assim: a de abelha, e de elefante , i de Ivo, o de ovo e U de uva.
Soletrávamos assim: c com a = Ca / c com e = CE / c com i =ci / c com o = CO e c com u = não se diz que é feio.
Meu pai, homem rude, certa feita foi ensinar-me a tarefa. Disse: escreva ca e eu , automaticamente escrevi ca . Ele repetiu: escreva ca e eu, novamente ca . Ganhei um cascudo e nunca mais esqueci a letra que ele escreveu K.
Era assim que a gente aprendia, mas não fiquem zangados com ele. Foi dele que recebi a maior lição de amor aos livros.
Muito pobre, meu pai só tinha de bens materiais um trancelim de ouro e uma coleção de livros. Eu peguei sarampo e quase ceguei. O meu pai vendeu os seus únicos tesouros para comprar remédios. Ele lia muito, cconsequentemente, falava muitíssimo bem . Eu queria ser como ele.

A minha infância foi acompanhada por uma grande contadora de histórias, minha avó, chamava-se Nenem. Ah! Como eu amava aquela mulher! A história da Figueira era a minha preferida. Vovó repetia com ênfase: “jardineiro de meu pai não me corte os cabelos, minha mãe me penteou e minha madrasta me enterrou, pelos figos da figueira que o passarinho bicou.”
Minha mãe era linda, é linda! Ela sempre me contava a história da D. Baratinha que tinha fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Eu também amava essa ... E quando Dom Ratão cai dentro do caldeirão de feijão, no dia do casamento... Que tristeza!
Quando meu irmão nasceu, meu pai comprou uma radiola portátil, daquelas que a caixa de som era a tampa, com ela vieram os discos de historinhas. Eles eram coloridos como a minha imaginação. Conheci o Soldadinho de chumbo e sua Bailarina. Foi a primeira história de amor verdadeiro que conheci, pois por causa da praga do Ogro o soldadinho cai da lareira bem dentro do fogo e ela ( a bailarina) vendo o seu amor derreter-se ,pula na fornalha. Mas o amor não acabou. No dia seguinte, encontram entre as cinzas. Um bonito coração.
Pude ouvir o coelho da Alice gritando: “ É tarde! É tarde! Tão tarde até que arde. Ai, ai, meu Deus! , Alô! Adeus . É tarde! É tarde! É tarde!
Aos treze, apaixonei -me por Hitticliffe , personagem do livro O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Bronte. Livro que retirei da nova biblioteca de meu pai. Eu lia tudo que me chegava as mãos.
Na universidade, tantas emoções. Encontrei um professor que todos odiavam: Janilto. Eu o amava. E ele a mim. Éramos loucos. Ele nos indicou um livro – Judas o Obscuro – amei.
Ana Karenina de Tolstoy, Flores do mal de Baudelaire , As raparigas em flor de Proust, Madame Bovary de Flaubert- acompanhei de perto as fugas de Ema Bovary, correndo pelos campos , cortando seus pés em pedras, furando-os em espinhos... Tudo para encontrar os seus amantes. Ema era totalmente passional, o retrato das emoções levadas ao extremo. Seu excesso de individualidade, insensibilidade, a sua incapacidade de encontrar o amor de forma positiva. Parece que a vejo hoje, morta num vestido branco, porém, ironicamente, manchado de negro vômito.
Aqui no Brasil, vi Dom Casmurro assistir ao amor de Bento e Capitolina. Machado brincando conosco, lembrando-nos que o tempo é irreversível. Em São Bernardo, o tolo Luís matou Madalena - ninguém escreve como Graciliano. Ah! E as Recordações do escrivão Isaías Caminha. Bárbaro o nosso Lima Barreto denunciando e resistindo ao preconceito. O Crime do Padre Amaro que continua atual - o crime da hipocrisia - parabéns ao nosso querido Eça de Queiroz, que também escandalizou a sociedade com O Primo Basílio. São muitos os momentos e as sensações trazidas, tragadas, sorvidas pela leitura... Os olhos não dão conta de tantas emoções.
Hoje, leciono. Tento encantar como fui encantada. A literatura é extremamente linda e desejável, por isso vou espargindo esse perfume, esperando que os alunos sintam-no e despertem para um encontro que ficará para sempre em suas memórias.
Carlos Drummond dizia que preparava uma canção para acordar os homens e adormecer as crianças. Creio ser essa a tarefa de todos nós professores. Cecília Meireles disse que sua tarefa como educadora era “acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar.” Jesus Cristo , o maior dos educadores, contava histórias e através de parábolas emocionava, iluminava, contribuía para vida das pessoas. Despertando consciências.
O educador tem a linda missão de acordar os jovens descuidados, torná-los pessoas “de bem”, conscientes e aptos a trilhar, corajosamente, o caminho da vida. Cientes do quanto podem fazer pelo mundo e para o mundo...

Um comentário:

  1. Helena , és um exemplo para mim !


    A senhora é muito importante na minha vida !


    Beijos , da sua aluna ...
    Emily

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