Turminha,
Amanhã será a apresentação do projeto "Manhã Literária", uma manhã inteira para vivermos momentos de dois autores nacionais de extrema grandeza: Carlos Drummond de Andrade e Lygia Fagundes Telles.
Neste endereço http://www.teatrodagaragem.com.br/teatrodagaragem/saxofone/autora.htm encontrei uma análise sobre um dos textos que serão representados amanhã: Apenas um saxofone. Leiam! Garanto que os ajudará a enxergar mais de perto as personagens que transitam o texto lido nesse período.
Um abraço!
O conto "Apenas um Saxofone" integra o livro "Antes do baile verde" (publicado em 1970 e traduzido para o tcheco, o russo e o francês); uma das obras mais marcantes da carreira de Lygia Fagundes Telles. Os contos, escritos entre 1949 e 1969, deixam claro para o leitor por que a autora é uma das mais representativas e premiadas escritoras brasileiras.
A autora demonstra uma coragem singular para trabalhar pontos mais delicados da condição humana através de personagens cínicos, amargos e, principalmente, cruéis como neste clássico conto "Apenas um saxofone", onde uma mulher pede ao amante que se mate como prova de amor.
O que mais impressiona nas suas histórias é notar a insistência (obsessão?) em alguns temas. Vai e volta e ela insiste nos mesmos temas. A morte; a loucura, o passado que não volta mais e tantos outros temas que integram o universo ficcional lygiano.
Em Lygia, a temática da morte é algo bastante presente, está permeada de elementos do grotesco, do mistério, do suspense, as vezes carregado de fatalidade e culpa. Os temas nunca estão isolados como pérolas numa concha. O tema da morte, por exemplo, pode ser visto imbricado conjuntamente com o da solidão e loucura.
A personagem de "Apenas um Saxofone" representa não só a solidão, o abandono, mas também a representa a culpa, o medo. Fechada em seu mundo, submissa e só, faz um balanço da sua vida em meio ao álcool. Irritada com as pessoas, com a frivolidade coletiva, de tão lúcida, as vezes beira a loucura. A viagem que ela faz é interior, indaga sobre a sua existência, a sua vida.
Na idéia de solidão narrada nos livros lygianos há sempre um fio de loucura. Em geral, a solidão é encarada de forma infeliz, uma vez que ela paira sempre interditando o desejo do outro, da espera desse outro, transformado em sombra. Solidão que pode levar à derrota, a um processo de amadurecimento e crescimento, ou, simplesmente, pode expor a alienação.
Solidão, passado, morte, loucura... literatura de Lygia não é apenas isso. Diversos contos da escritora são repletos de humor, romantismo, uma certa crença no amor, no sonho, no encontro entre duas pessoas. Nessa linha, há, inclusive, um livro parcialmente autobiográfico, bastante romântico, misto de ficção e realidade, chamado A Disciplina do Amor.
A arte de Lygia tem um grande sentido de libertação porque a toda hora podemos nos ver nos preconceitos das suas personagens. A indiferença, o racismo e elitismo humanos estão na sua obra servindo de espelho para nós.
Além de todos esses temas, suas narrativas turbulentas, de diálogos cuidadosamente esculpidos são marcadas por finais em aberto. Os finais das histórias de Lygia provocam o imaginário do leitor. Boa parte delas "terminam sem terminar", ou seja, fogem do esquema começo-meio-fim. Há sempre uma cartada, uma surpresa, um susto. Ao se ler e reler as suas histórias percebe-se claramente que não se trata de uma escritora maniqueísta, que segue o esquema fácil tipo "novela das oito", com começo e meio arrastados e aquele final com um monte de casamentos. Quem busca um final feliz, típico dos filmes de Hollywood e novelas, não encontrará. O cômodo happy-end passa longe da literatura lygiana.
Nesse Brasil, grassado pelo analfabetismo e por tantas injustiças, ler Lygia Fagundes Telles é um sopro de inteligência e rara beleza. Felizmente ela tem servido como contraponto dessa (sub) cultura descartável, desse lixo que surge e some sem deixar pistas.
Ela escreve desarrumando nossas certezas, expondo nossos preconceitos, medos e desejos, as vezes sombrios, perversos e insanos, mas necessários para mostrar que somos capazes dos atos mais humanos e, ao mesmo tempo, vis e cruéis. Com isso, a autora fala da alma humana, da rede de obstáculos com que o homem se depara diante da vida, do mundo. Assim, a docilidade dos seus personagens é apenas aparente. É que eles estão desnorteados pela sensação de perda, do vazio diante da vida. Os personagens passam muita dor e desencontro porque assim são as nossas relações. No geral, eles agem cruelmente. Crueza que não deixa imune a quem procura os seus livros.
Apesar de expor o tempo todo as dificuldades de relacionamento, a sua obra perpassa também um grão de otimismo porque ela quer que o leitor acredite no ser humano. Apesar de tudo, parece nos dizer, há uma luz. Mesmo expondo a dificuldade de compreensão, de amar o outro, mesmo mostrando o desencontro, as dores do mundo, os anseios e desesperos deste outro, seus livros também têm este otimismo porque ela sabe que nessa busca estamos nós e está a sua literatura.
( extraído de ensaio de Suênio Campos de Lucena; jornalista, escritor e professor de Comunicação Social da UNEB, Universidade do Estado da Bahia, com Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela FACOM/UFBA.)
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