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domingo, 4 de março de 2012

Precisamos falar sobre o Kevin






Precisamos falar sobre o Kevin é uma obra-prima.

É difícil sintetizar, em um ou dois parágrafos, a história desse livro. Não que a trama seja exageradamente extensa ou cheia de detalhes, mas o desenrolar dos fatos simplesmente não é a parte mais importante dessa grande produção literária. De qualquer forma, o que acontece é o seguinte: Kevin Khatchadourian, aos quinze anos, assassina nove pessoas em sua escola, em uma espécie de massacre que, na transição entre os séculos XX e XXI, havia se tornado quase banal nos Estados Unidos. Kevin se entrega à polícia, é julgado e condenado a sete anos de prisão; a pena só não é maior porque o crime foi cometido três dias antes de o astuto KK completar seus dezesseis anos e atingir a maioridade penal norte-americana.

Se você quiser ler Precisamos falar sobre o Kevinsimplesmente pela trama, não vai encontrar nada além do que eu descrevi acima. É claro que o desenrolar dos capítulos reserva-nos algumas surpresas, assim como o final da trama - mas, em suma, é simplesmente isso que acontece. A mãe de Kevin, Eva, é a mestra dessa narração, e ela fará uma exposição de tudo que aconteceu desde antes do nascimento de Kevin até os dias atuais. Só. Agora, permita que eu o convença a ler o livro mesmo assim.

O livro é todo em forma de cartas. Isso me lembrou muito do formato no qual Goethe estruturou sua obra-prima, Os sofrimentos do Jovem Werther - uma obra que, quando publicada originalmente em 1774, desencadeou uma onda massiva de suicídios na Europa. A narrativa dePrecisamos falar sobre o Kevin segue o mesmo modelo: cada capítulo é uma carta enviada por Eva, a mãe do garoto, a Franklin, o pai. As cartas seguem uma ordem consideravelmente linear, narrando os fatos de acordo com a linha do tempo, mas isso não quer dizer que Eva não se dê ao luxo de devanear um pouco, brincar com o presente e com o futuro, com os ses e com os quandos.

Um dos principais pilares da obra é a sinceridade. Todas as cartas são escritas em um compromisso supremo com a verdade, e Eva está disposta a confessar todos os seus pecados e decepções, a colocar no papel tudo aquilo que esteve aprisionado em sua alma por mais de dez anos. Você vai encontrar, por exemplo, uma mãe que confessa não ter sentido prazer algum quando o próprio filho nasceu, ainda que esperasse ser atingida por uma torrente de emoções inigualáveis. A sinceridade intimadora de Eva é sensacionalmente inesperada e inesperadamente sensacional.
"Para ser franca, tem certos dias", lancei um olhar funesto para a janela panorâmica deles," em que eu gostaria que lhe aplicassem a pena de morte. Para acabar logo com isso. Mas essa seria uma saída muito fácil para mim."
Tanto Eva quanto Kevin são personagens extremamente bem construídos. Espectadores de uma relação mãe-filho conturbada desde os primeiros segundos da vida de Kevin, os leitores são convidados a conhecer um garoto astuto, manipulador, assustadoramente estoico, com raros lapsos de humanidade e uma propensão a usar roupas curtas. Do outro lado da mesa, uma mulher ansiosa por experimentar as mil maravilhas da experiência da maternidade, orgulhosa e independente, levemente irônica, cujo seio o próprio filho não quis tocar. A relação entre os dois é tocante, e é impossível não se comover em certas partes do livro.
Quando parei de me revirar para pôr o casaco, ele disse: "Você pode enganar os vizinhos, os guardas, Jesus e a sua mãe gagá com essas visitas de mãe boazinha, mas a mim você não engana. Continue com isso, se quer uma estrela dourada. Mas não precisa arrastar a bunda até aqui por minha causa." Depois acrescentou: "Porque eu odeio você."
Pode parecer que Kevin é apenas mais um adolescente rebelde, indignado com o mundo e com a autoridade dos pais, mas creio eu que não é bem assim. A narração é em primeira pessoa, e isso nos fornece apenas o ponto de vista de uma personagem, mas, ainda assim, a construção de Kevin é tão bem feita e tão sincera que fica difícil duvidar de qualquer uma das palavras de Eva. Franklin, o pai do garoto, é um personagem que não se destaca tanto quanto os outros dois, ainda que suas características fundamentais sejam bastante realçadas. Você vai conhecer um homem que considera os Estados Unidos o melhor país do mundo, que não acredita que seu filho possa fazer qualquer coisa ruim; um romântico, no sentido mais literário da palavra.

No meio do livro, Eva resolve engravidar novamente e acaba por dar à luz Celia, uma garota frágil e corajosa, embora morra de medo de mofo. Mesmo assim, a história continua centralizada na relação de guerra entre mãe e filho, o que permite que você conheça ainda mais a fundo a personalidade de Kevin, ainda que ninguém faça ideia do que se passa por trás dos olhos neutros e da postura negligente do garoto.

Pouco a pouco, tijolo por tijolo, Eva conduz o seu leitor pela trilha de acontecimentos que culminaram no massacre realizado por Kevin. Aliás, falando dessa forma, eu provavelmente dou a crer que o garoto teve uma infância perturbada, cheia de traumas, e por isso suas frustrações acabaram sendo todas liberadas de uma só vez. Mas não é isso que acontece. E essa é justamente a pergunta que move o livro: se Kevin teve uma infância totalmente livre de traumas e relativamente normal, então... Por quê?
Faz muito tempo que me orgulho de meus poderes de navegação porque, na verdade, sou fantástica na hora de traduzir duas dimensões para três e sei usar os rios, as ferrovias e o sol para me situar. (Desculpe, mas sobre o que mais posso me vangloriar agora? Estou ficando velha, e aparento a idade. Trabalho numa agência de viagem e meu filho é um assassino.)
A linguagem do livro é fantástica. Se você está acostumado com livros mais infanto-juvenis, pode ser que tenha alguns problemas com o vocabulário usado por Lionel Shriver, mas eu lhe peço que não desista em decorrência disso. O grande prazer do livro é mergulhar nos devaneios nem sempre claros de Eva, compreender o turbilhão de emoções que é a sua mente, em oposição à névoa misteriosa que cobre os pensamentos de Kevin. A obra é uma experiência de auto-descobrimento: por mais que você não queira, você vai se identificar com Kevin em alguns momentos, e vai torcer para que os raros momentos de humanidade e afeto do garoto se prolonguem.
É justamente quando ela menos merece que mais a criança precisa do nosso amor.
Da mesma forma, você vai sentir raiva de Franklin, o pai do garoto, sempre que ele se colocar ao lado de Kevin, defendendo-o com unhas e dentes, ainda que a culpa de KK por algo seja inegável. Por Eva e por Kevin, você vai sentir pena e remorso, compaixão e ternura, raiva e agonia; a relação dos dois é um mistério para mim até agora, e não sei se algum dia virei a compreendê-la por completo. E é justamente esse o brilhantismo da obra: o detalhar antitético e não linear das emoções humanas, a viagem por dentro das mentes, a luta contra uma sinceridade assustadora.

Eu disse e repito: Precisamos falar sobre o Kevin é uma obra-prima de auto-descobrimento, auto-questionamento e auto-contemplação. Permita que o livro lhe mostre a alma de um assassino e sinta pena e admiração por ele. E acredite em mim quando digo que você pode finalizar a leitura e sair do universo de Kevin, mas ele não sairá do seu por um bom tempo.

Título: Precisamos falar sobre o Kevin.
Autora: Lionel Shriver.
Editora: Intrínseca.
Número de Páginas: 464.
Avaliação: 5 de 5.

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