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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Meu amado Quintana




DA CALÚNIA

Sorri com tranquilidade
Quando alguém te calunia.
Quem sabe o que não seria
Se ele dissesse a verdade...


DO BEM E DO MAL

No fundo, não há bons nem maus. Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e os que sentem prazer em fazer o mal. Tudo é volúpia...



DA DISCRIÇÃO

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...


DA AMIZADE ENTRE AS MULHERES

Dizem-se amigas... Beijam-se... Mas qual!
Haverá quem nisso creia!
Salvo se uma das duas, por sinal,
For muito velha, ou muito feia...


DO AMIGO

Olha! É como um vaso
De porcelana rara o teu amigo.
Nunca te sirvas dele... Que perigo!
Quebrar-se-ia, acaso...

DOS PONTOS DE VISTA

A mosca, a debater-se: "Não! Deus não existe!
Somente o Acaso rege a terrena existência."
A Aranha: "Glória a Ti, Divina Providência,
Que à minha humilde teia essa mosca atraíste!"

DOS DEFEITOS E DAS QUALIDADES

Diz o Elefante às Rãs que em torno dele saltam:
"Mais compostura! Ó Céus! Que piruetas incríveis!"
Pois são sempre, nos outros, desprezíveis
As qualidades que nos faltam...

DA REALIDADE

O sumo bem só no ideal perdura...
Ah! quanta vez a vida nos revela
Que a”a saudade da amada criatura”
É bem melhor que a presença dela.



Melhores poemas de Quintana - seleção de Fausto Cunha


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O BILHETE DE AMOR



Logo que colocou os objetos embaixo da carteira Pitu encontrou o bilhete. Leu, ficou vermelho, colocou no bolso, não mostrou pra ninguém. De vez em quando, mordia-lhe uma curiosidade grande, uma vontade de reler pra ter certeza. Era uma revelação que ele não estava esperando. Não podia dizer que estivesse achando ruim, pelo contrário... ele estava com vontade de olhar pra trás, para procurar uma resposta com o olhar. Era um tímido e não encorajava. A professora explicava num mapa as regiões do Brasil e ele viajava num rumo diferente.
Ainda bem que ela não estava olhando para ele, nem fazendo perguntas, só estava expondo a matéria. Na hora da verificação, acabaria saindo-se mal. Não gostava de ignorar as coisas perguntadas. Estava meio perdido nos pensamentos confusos. O bilhete queimando no bolso. Interessante, não era um bilhete bem escrito, tinha até erro de Português – porque a curiosidade? Só ele sabia dele, não foi como no dia do correio-elegante, pai, mãe e seu Francisco do armazém querendo saber, dando palpites, agora, tinha um bilhete que trazia uma declaração de amor e uma assinatura. Trazia mais: um convite para um bate-papo na praça, às duas horas, se ele quisesse namorar de verdade.
Marina era bonitinha, ele queria. Faltava-lhe jeito de dizer, tinha que escrever um bilhete respondendo, era mais fácil. No intervalo, escreveu o bilhete, fechado no banheiro.
Quando ela chegou, a resposta esperava na carteira. Quase no fim da aula, ele criou força e olhou para trás. Marina sorria, confirmando. Ele sorria também. Os dois estavam vivendo uma ternura primeira e não sabiam escondê-la mais. Tanto assim que a professora pediu que ele virasse para frente, observasse o que ela estava pedindo pra pesquisa do fim de semana. Naquele fim de semana, ele iria pesquisar alguma coisa nova que não tinha experimentado, como alguns outros da sua idade e turma.

( Elias José. As curtições de Pitu. São Paulo: Melhoramentos, 1976)

Para você


terça-feira, 28 de agosto de 2012

Oi, Turminha!

Preciso montar um coral para apresentações solidárias no final do ano.
 
Conto com a turminha do Senhor, pois não há nada mais gratificante do que oferecer louvor ao Deus Altíssimo,  Aquele que por nós tudo executa!

"Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia de mim, porque a minha alma confia em ti; e à sombra das tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades.
Clamarei ao Deus altíssimo, ao Deus que por mim tudo executa.
Ele enviará desde os céus, e me salvará do desprezo daquele que procurava devorar-me. (Selá.) Deus enviará a sua misericórdia e a sua verdade. "
Salmos 57:1-3
Beijo!


























                                    Tirei daqui http://thecrazywolrd.blogspot.com.br

Colaboração da aluna Débora 8o. ano A

Briga no beco







Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres. 

Adélia Prado

Repare no intertexto do Emerson do 8o. ano A



A Minha Vida


Antes mesmo de nascer,
um anjo dos céus, disse:
Vai, Emerson! Ser alguém
alguém, grande na vida.

O homem atrás deste rosto
é forte, é bom e generoso
Tem muitos amigos
mal não para de falar.

Obrigado Meu Deus por nunca
nunca me abandonar
agora que eu sei que não sou Deus
sou apenas um homem fraco.

Mundo Mundo grande Mundo
se meu nome fosse Edmundo
não seria um problema.

Eu quero te falar
essa lua
essa grande lua
esta nos deixando felizes como uma criança.


Emerson Xavier

Repare no intextertexto da Aninha do 8o. ano A

DUAS VEZES LICENÇA POÉTICA

Quando nasci, um anjo pequeno me disse : 
Vai, Ana! ser Mulher.
Porque mulher é a coisa mais difícil 
do mundo, tem que ser mãe , esposa
amiga, dona de casa e profissional.
Como Adélia Prado disse: 
Mulher é desdobrável.
Já o homem, não consegue
nem a metade da mulher , 
quando ele está triste quem o 
consola somos nós .
Mulher é mais do que desdobrável
ela é elástica.
                              ANINHA

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Eu Escrevi um Poema Triste



Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

  Mario Quintana

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A disciplina do amor

    
                                      Tirei daqui

Encontro com F. na livraria. Estranhou o título que vou dar a este livro, mas por que disciplina do amor? O amor lá tem disciplina? perguntou e deu a resposta: amor disciplinado nunca foi amor, pode ser método, arrumação no sentido de se botar tudo direitinho nos lugares, cálculo, mas amor?! Pois amor não era ilogicidade? Transgressão?
Digo-lhe que a indisciplina está só na aparência, na superfície. Na casca. Porque lá nas profundezas o amor é de uma ordem e de uma harmonia só comparável à abóbada celeste.
Ele ficou me olhando. Arqueou as sobrancelhas, surpreendido: “Mas então só conheci o amor superficial? Cada vez que amei foi tanta a insatisfação e a insegurança. Fico em total desordem!”
Desejei-lhe um amor verdadeiro e ele riu, desafiante. Quis saber se por acaso eu tinha atingido no amor essa plenitude celestial. Não respondi. Falamos sobre política, livros. Mas quando saí da livraria, me vi Adão sendo expulso do Paraíso, o semblante descaído e o olhar no chão.” 
TELLES. Lygia Fagundes. A disciplina do amor. 2. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. 

Madrigal



Meu amor é simples, Dora, 
Como a água e o pão. 
Como o céu refletido 
Nas pupilas de um cão. 

PAES, José Paulo. Um por todos; poesia reunida. São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 192. 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O sempre amor

                                          Tirei daqui



Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
Sou de pedra sabão.
Alegre ou triste,
amor é coisa que mais quero.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O CHAMADO DO MONSTRO: RECONHECIMENTO DO PÚBLICO E DA CRÍTICA

Se você foi a alguma grande livraria nas últimas semanas, certamente se deparou com O chamado do monstro, novo título do catálogo de literatura da Editora Ática. Talvez ele estivesse entre os livros de ficção juvenil, talvez entre os de adulta, ou, talvez, apenas acomodado entre as prateleiras de “novidades”. O chamado do monstro é isto tudo, mas vai além.
A obra do escritor americano Patrick Ness supera rótulos porque tem como pano de fundo a densidade da vida. Para escrevê-la, Ness se baseou nas ideias de Siobhan Dowd, autora inglesa morta por câncer em 2007. “Siobhan criou os personagens, uma premissa e um começo. Mas não teve, infelizmente, tempo de ir em frente”, escreveu ele na nota de apresentação do livro. “Eu senti – e sinto – como se tivessem me passado o bastão, como se uma escritora especialmente talentosa tivesse me dado a história dela e falado: ‘Vá. Assuma o comando. Faça barulho’”.
Publicado no início do ano na Europa e em setembro nos Estados Unidos, O chamado do monstro realmente tem feito barulho. Podemos tomar como termômetro o reconhecimento do público (o site do autor reúne centenas de comentários elogiosos de leitorese da crítica, como indicam as diversas reportagens e resenhas que saíram na imprensa – vide esta do New York Times esta da Folha de S. Paulo, publicada no último sábado.
O livro é uma emocionante narrativa sobre a perda, o amadurecimento e o poder da verdade. O personagem principal da história é Conor, um menino de 13 anos que durante o dia precisa lidar com o reinício do tratamento da mãe contra o câncer, com a vinda da avó para “ajudá-los”, com a permanente ausência do pai, que formara uma nova família, e com o bullying diário na escola.
À noite, o motivo de assombro é um imponente teixo que se transforma em monstro e sempre aparece na janela de seu quarto após a meia-noite, forçando-o a enfrentar os seus maiores pesadelos: o medo de perder a mãe e o de revelar um grande segredo. Neste ponto, ficção e realidade se cruzam de forma sutil, já que a escolha da planta-monstro não ocorre ao acaso: “Siobhan estava interessada no teixo, árvore antiga associado à cura. Sua casca produz remédio para câncer”, explicou Ness em entrevista à Folha.
Para os interessados em O chamado do monstro, disponibilizamos a seguir o trailer do livro e uma breve amostra de sua eletrizante narrativa.

“Já mais alto do que a janela de Conor, o monstro se ampliou até se constituir por inteiro, transformando-se em uma figura poderosa, que parecia forte e, de certo modo, imponente. Ele não tirava os olhos de Conor, que ouvia a ruidosa ventania que emanava da boca dele. O monstro colocou suas mãos gigantescas nos dois lados da janela e abaixou sua cabeça até seus olhos enormes preencherem o espaço do caixilho, prendendo Conor com seu olhar penetrante. A casa inteira gemeu com o peso dele.”

                                               Siobhan Dowd (1960 - 2007)
                                                           In memorian

sábado, 18 de agosto de 2012

Para você


      "A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que    se precisa tanto de viver acompanhado."
                                                                  Rachel de Queiroz

O Quinze

Oi, Turminha!

A Editora Ática lançou mais uma grande obra adaptada em quadrinhos O Quinze, de Rachel de Queiroz. O texto faz parte da coleção Clássicos Brasileiros em HQ. Shiko é o responsável pelo roteiro e arte. 

O romance original foi publicado em 1930 e chamou a atenção por ter sido escrito por uma autora ainda iniciante. Além , é claro, das muitas semelhanças entre Rachel de Queiroz e sua protagonista, Conceição: mulheres independentes e crescidas no Ceará . 

O texto apresenta vidas entrelaçadas por um longo ano de estiagem - o ano é 1915, marcado  na história por uma das maiores secas que o nordeste brasileiro já enfrentou. As personagens  Conceição,Chico Bento e Vicente vivem em meio à desilusão e à fé em dias melhores . 

"A adaptação nos lança cara a cara com o flagelo através do realismo minucioso dos traços de Shiko, sem perder a sutileza lancinante do original de Rachel de Queiroz." 

Você vai amar essa leitura!




                                                     Imagens daqui


O Quinze/ Rachel de Queiroz ; roteiro e arte Shiko. - 1. ed. São Paulo: Ática, 2012.

Rachel de Queiroz


                                                         Tirei daqui


Rachel de Queiroz (Fortaleza, 17 de 1910 — Rio de Janeiro 4 de novembro de 2003 ) foi uma tradutora, romancista, escritora,jornalista, cronista prolífica e importante dramaturga brasileira.
Autora de destaque na ficção social nordestina. Foi primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi a primeira mulher galardoada com o Prêmio Camões, equivalente ao Nobel, na língua portuguesa. Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 15 de agosto de 1994 na ocasião do centenário da instituição.

Shiko


Tirei daqui 















Shiko nasceu em Patos, no sertão paraibano, onde viveu até os 20 anos. Começou sua carreira nos quadrinhos e hoje é um artista múltiplo: ilustra, grafita as cidades por onde passa, dirige filmes e animações , etc. Sua obra é reconhecida no Brasil e no exterior. 


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Para você


Mais um conto






Amor
Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

 Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

 Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

 No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

 Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

 O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

 O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

 Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

 Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

 Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

 Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

 Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

 A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

 De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

 Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

 Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

 Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

 Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

 As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

 Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

 Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

 Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

 Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

 Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

 Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

 Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

 Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

 Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

 Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

 Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

 — O que foi?! gritou vibrando toda.

 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

 — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

 — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

 Acabara-se a vertigem de bondade.

 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.